*Mônica Costa
É preciso celebrar a competência das mulheres negras, especialmente em um contexto de resistência como a literatura. Em 1859, a escritora maranhense Firmina dos Reis publicou o romance Úrsula, considerada a primeira obra abolicionista do Brasil e um dos primeiros escritos produzidos por uma mulher brasileira. Um século depois, em 1960, o livro Quarto de Despejo, da mineira Carolina de Jesus, teve sua primeira edição, de 10 mil exemplares, esgotada em uma semana. Hoje, a obra já foi traduzida para 13 idiomas e pode ser encontrada em mais de 40 países.
Tais exemplos reforçam a competência da mulher negra, que apesar de todos os desafios, sempre teve entre suas aptidões, a excelência na literatura. Mas para o mercado editorial vigente, talentos como os de Firmina ou Carolina não são valorizados. E mais uma vez, temos que cavar com nossas próprias mãos as brechas para dar voz e cores a tudo o que desejamos falar.
“Fiquei incomodada ao perceber que no Brasil, um País multirracial, não havia empresas editoriais que contemplassem a cultura afro-brasileira”, diz Maria Mazarello Rodrigues, que fundou em 1981, em Belo Horizonte, a Mazza Edições. A empresa tem o propósito de colaborar para a construção de uma sociedade baseada na ética e no respeito à diversidade. “Fiz o mestrado em editoração em Paris, e lá percebi que muitos países europeus publicavam e consumiam escritores, livros e editoras que abordavam a temática da cultura africana”, diz.
Com mais de 100 livros publicados, a Mazza é uma das editoras mais antigas no Brasil especializada em literatura afro brasileira. É também a responsável pelo lançamento no mercado editorial de vários talentos da literatura afro brasileira, como a premiada escritora e poeta mineira Conceição Evaristo, do professor Edimilson de Almeida Pereira, as escritoras Geni Guimarães e Cidinha da Silva, o poeta Luiz Silva – o Cuti – e muitos outros.
Os 36 anos no segmento editorial e o reconhecimento nacional e internacional por sua contribuição para o debate sobre a diversidade étnico-cultural no Brasil não diminuíram as dificuldades de acesso ao mercado. Há cerca de um mês, o livro Omo Obá – histórias de princesa, da escritora Kiusam de Oliveira, foi boicotado por pais de alunos do SESI no Rio de Janeiro, que chegou a anunciar a suspensão da obra. A ação racista foi obstruída pelo Ministério Público após uma feroz campanha nas mídias sociais rebatendo a medida.
“Este foi só mais um exemplo na minha luta diária. Desde que fundei a editora tenho que lidar com um sistema hostil que barra o ensino da história e cultura afro-brasileira”. Muito respeitada por sua ação de vanguarda, Maria Mazarello não se considera uma empresária, como tantos proprietários de editoras, mas uma militante. “Ergui este bastão e terei que levar esta luta até o fim”, diz a valente editora, hoje com 77 anos de idade.
Enfrentamento
Em 2017, o mercado editorial brasileiro produziu cerca de 42,3 milhões de exemplares e faturou R$ 1,7 bilhão, de acordo com dados do Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL). Quase nada deste mercado contempla escritores ou editoras negras. 94% dos autores publicados são brancos e 72% do sexo masculino, mostra um estudo publicado em 2012 pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, (UERJ), após analisar 258 romances publicados por três grandes editoras entre 1990 e 2004. Outros estudos confirmam esta discrepância: “60% das escritoras ‘marginais’ se declaram negras e pardas”, aponta a jornalista Jessica Balbino em sua pesquisa de mestrado intitulada: “Pelas margens: vozes femininas na literatura periférica”.
“Nossa proposta é de enfrentamento. Queremos colocar no mercado literário livros excelentes feitos por mulheres negras, indígenas e trans que não encontram o espaço merecido em um segmento majoritariamente branco e masculino” afirma a escritora Jarid Arraes, 27 anos, que ao lado da editora Lizandra Magon de Almeida, lançou em São Paulo o selo Ferinas.
Ambas trabalharam juntas no livro “Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis”, que vendeu mais de 5 mil exemplares em seis meses. “Mas antes do lançamento deste livro eu recebi muitos ‘nãos’ de outras editoras”, diz Jarid, que é a curadora do selo que deve apresentar as primeiras obras em julho na Flip 2018. “O mercado não compreende que o racismo e o machismo impedem a ampliação da base de leitores. Se somos um país diverso é preciso que esta diversidade esteja nas páginas dos livros”, afirma.
Diversidade também é a bandeira da Padê Editorial, criada em 2015, por Tatiana Nascimento, 37 anos, professora voluntária de “feminismos e teoria queer” na Universidade de Brasília (UNB), em parceria com a poeta e editora Barbara Esmênia. “A Padê é sobre pensar os furos e as brechas criadas por uma sociedade capitalista construída em cima da exploração do povo negro”, diz Tatiana. “Nós acreditamos que a literatura negra perpassa por todos os aspectos da vida humana e não se limita apenas às denúncias sobre racismo, por isso preferimos outras narrativas com outros modelos que contemplem a diáspora africana e a negritude desde a perspectiva da dissidência sexual”, segue.
Dedicado à publicação de livros artesanais em tiragens pequenas, de 300 a 500 exemplares, a editora, que já lançou 12 títulos, tem como critério de seleção, a capacidade de emocionar. “Não estamos preocupadas em criar Best Sellers, mas queremos que nossa voz, nosso ponto de vista, nossa história – contada por nós mesmas – sejam conhecidos”, afirma.
*Mônica Costa é jornalista, mãe de um garoto de 14 e de uma menina de 7 anos. Estudiosa de educação financeira e curiosa sobre a condição da mulher negra e o capital.
Artigo original em: https://financasfemininas.com.br/mulheres-negras-criam-editoras-para-livros-de-cultura-afro-brasileira/